Histórias de Orcas
Amizades, terremotos, cativeiro e aquela orca que cuspiu em mim
Península Valdés, Argentina, 2000.
Apesar de ser novembro estava frio e o vento conseguia achar formas de penetrar nas três camadas de roupas e chegar até a pele. O céu estava cinza e na minha frente havia uma praia de areia grossa, bem inclinada, com alguns lobos marinhos descansando. O mar não estava agitado e eu olhava em busca daquela longa e inconfundível nadadeira dorsal, mas nem sinal dela. Eu estava no lugar certo, mas na época errada.
Punta Norte, na Península Valdés, é uma praia onde as orcas encalham intencionalmente para capturar os lobos marinhos. Este comportamento só acontece em dois locais no mundo, nas ilhas Crozet, um arquipélago de ilhas sub-antárticas no oceano Indico, e aqui onde eu estava.
O local estava certo, mas se eu quisesse ver orcas encalhando na praia para capturar lobos marinhos teria que esperar mais uns três meses até que os filhotes de lobos tivessem idade para entrar na água. Aí sim, as orcas viriam patrulhar estas águas em busca de suas presas.
Eu estava na Argentina participando da Reunião de Trabalho de Especialistas em Mamíferos Aquáticos da América do Sul, um congresso bienal com nome muito comprido e que por isso a gente prefere chamar de RT. A RT ocorreu em Buenos Aires e aproveitei a oportunidade para ir conhecer a Península Valdés, que fica 1300 km ao sul, na Província de Chubut. Durante a RT eu conheci o Roberto Bubas, Guarda Parque que trabalhava com as orcas e combinei de fazer-lhe uma visita em de Punta Norte.
Eu estava na cabana sede do parque e Roberto me mostrou as fotos que ele tirou das orcas paradas na beira da praia ouvindo ele tocar gaita. Ele foi uma das pessoas que ajudou a desmistificar a má fama que as orcas tinham de serem "baleias-assassinas" mostrando que mesmo estas orcas que vinham até a praia capturar lobos marinhos não mostravam nenhum sinal de agressão com as pessoas.
Descemos até a praia, vi a colônia de lobos marinhos, mas nem sinal das orcas. Enquanto conversávamos ele contou que apenas alguns indivíduos do grupo fazem este comportamento de encalhar para capturar os lobos marinhos. Existe ali um canal mais fundo que as orcas usam para se aproximar da praia e, algumas vezes, elas podem nadar meio deitadas de lado para manter sua nadadeira dorsal oculta dentro d'água. Quando a orca vê um animal entrando na água ela avança rapidamente com a onda, agarra o filhote de lobo e nessa manobra chega a encalhar na praia. Com as ondas seguintes ela consegue manobrar o corpo até colocar a cabeça virada para o mar e seguir para o fundo levando sua presa.
Península Valdes - Argentina Apenas em dois locais do mundo se pode ver esta cena.Foto: @JorgeCazeEste comportamento, que é transmitido através das gerações, é uma manifestação cultural das orcas da Península Valdés e das ilhas Crozet. Os adultos ensinam aos animais mais jovens como usar esta técnica para conseguir o alimento.
Embora as orcas em Valdés se alimentem de mamíferos, outras populações ao redor do mundo tem hábitos alimentares distintos. Há orcas no Canadá que se alimentam exclusivamente de salmão enquanto que outras na Antártica preferem comer pinguins. Há registros de orcas se alimentando de grandes baleias e também predando tubarões-brancos. As orcas estão no topo da cadeia alimentar dos oceanos.
Despedi-me de Roberto e fiquei de voltar uma outra vez para tentar ver as orcas em Punta Norte. No balanço geral a viagem para a Argentina teve um saldo muito positivo. Não consegui ver as orcas mas observei baleias franca, visitei colônias de elefantes e lobos marinhos e conheci um pouco da beleza da Patagônia. Além disso, durante a RT recebi uma oferta de emprego para trabalhar no Projeto Peixe-Boi. Eu não sabia, mas veria uma orca encalhada muitos anos depois, só que não da forma como eu gostaria.
Anchieta, Espírito Santo, 2014
Estávamos na estrada há bastante tempo e ainda havia muitos quilômetros pela frente. Éramos cinco pessoas dentro de uma Toyota Hilux, o que não ajuda muito numa viagem de 500 quilômetros. Já era de noite e a pista simples da BR101, além da ansiedade, fazia a viagem ficar ainda mais longa. Ao meu lado, dirigindo estava o Hernani Ramos, um veterinário que tinha se juntado à nossa equipe naquela temporada. Espremidos no banco de trás tentando dormir estavam Arnaldo Maruyama, João Bertão e Juliede Neves, três estudantes de veterinária que estavam estagiando no
Instituto Baleia Jubarte. Seguíamos à caminho de Anchieta, no sul do Espírito Santo, onde uma orca estava encalhada viva desde a manhã daquele 14 de agosto de 2014.
As orcas são frequentes durante o inverno no Sul e Sudeste do nosso litoral. Eu costumo passar o inverno trabalhando no Banco dos Abrolhos, mas apesar de encontrar várias jubartes com marcas de mordida na cauda em 23 anos de trabalho com as baleias eu nunca vi uma orca por lá.
Eu estava no escritório quando recebi uma ligação do Lupércio Araujo, nosso parceiro do
Instituto Orca. Ele contou que uma orca havia encalhado viva em Anchieta logo pela manhã. Já havia uma equipe no local fazendo o atendimento, mas ela não parecia estar muito bem. Estava magra e o pessoal estava em dúvida entre fazer uma tentativa de desencalhe quando a maré subisse ou a possibilidade de levá-la para um tanque até descobrir o que havia de errado. Ele pediu que ficássemos prontos para ir para lá caso fosse necessário.
Estávamos em Caravelas, no sul da Bahia, onde fica a sede do Instituto Baleia Jubarte. Era uma viagem de 500 km e a única opção era ir de carro. Avisei a equipe, escolhemos quem iria na viagem, separamos o material de resgate e cada um preparou uma mochila com roupas sem saber ao certo quantos dias ficaríamos por lá.
No início da tarde nos avisaram que, durante a maré cheia, a orca tinha sido colocada na água mas, após nadar em círculos, ela logo voltou a encalhar. Não havia nenhum centro de reabilitação por perto que tivesse um tanque para uma orca. O pessoal estava outras opções de lugares que pudessem ser utilizados para mantê-la em tratamento. Combinamos que então nós iriamos nos juntar aos esforços para tratar a orca, apesar de ser bem além do limite onde nós costumamos trabalhar.
Antes de partir lembrei de uma pessoa que tinha muita experiência com orcas, inclusive com animais encalhados e resolvi tentar um contato. Ingrid Visser é a maior especialista em orcas do mundo. Nós nos conhecemos no Alasca durante uma reunião da Comissão Internacional da Baleia - CIB e mantivemos contato. Ingrid sem dúvida poderia ajudar neste encalhe, o único problema é que ela estava do outro lado do mundo, na Nova Zelândia.
Mandei um e-mail para ela explicando a situação e dizendo que qualquer sugestão dela seria bem-vinda. Por causa da diferença de fuso horário eu pensei que ela provavelmente estaria dormindo e que eu só iria encontrar sua resposta depois que já estivesse em Anchieta.
Mas poucos minutos depois de ter enviado a mensagem minha caixa de entrada piscou e apareceu uma resposta dela. Eram umas cinco da madrugada na Nova Zelândia, mas ela já estava de pé e disposta a ajudar a salvar aquela orca. Ela passou algumas orientações do que poderíamos tentar para devolver a orca ao mar e me perguntou qual a cidade com aeroporto mais próximo. Agradeci a ajuda e disse que o aeroporto mais próximo era em Vitória, sem entender bem o por que ela queria esta informação. Será que teria algo a ver com o resgate?
Enquanto a gente se preparava para partir chegou outra mensagem da Ingrid. Ela havia acordado sua agente de viagens e pedido para ela fazer uma cotação de passagem da Nova Zelândia para Vitória. Disse que conseguiria chegar em 48 horas e poderia trazer uns 25 kg de equipamento para ajudar a desencalhar a orca. Esse é o nível de paixão que a Ingrid tem pelas orcas. Ficaríamos sem contato enquanto estivéssemos na estrada por isso falei que eu entraria em contato depois de examinar a orca e aí decidiríamos se ela deveria vir ou não.
Saímos de Caravelas as 16:00 horas e mantivemos contato com a veterinária Larissa Pavanelli . Larissa trabalhava na empresa que executava o Projeto de Monitoramento de Praias e estava atendendo este encalhe desde o início. Durante a viagem houve bastante tempo para conversar com a equipe e discutir o que sabíamos até ali e o que poderíamos fazer quando chegássemos lá.
Fui pensando na Ingrid e na paixão que as orcas despertam nas pessoas. Apesar de ser chamada de baleia por seu porte, a orca pertence à família dos golfinhos. Hoje ela é reconhecida como uma única espécie, Orcinus orca, mas há quem defenda que na verdade seriam duas ou três espécies distintas. Existem orcas com dialetos distintos e com hábitos de alimentação diferentes.
Durante muito tempo elas foram encaradas como animais a serem temidos. Mesmo sem nunca ter ocorrido um ataque à ser humano na natureza alguns manuais de mergulho recomendavam que em caso de aparecer uma orca as pessoas deveriam sair da água imediatamente. Mas aos poucos esta imagem foi mudando e passamos a conhecer melhor estes animais. A complexidade da vida social das orcas surpreende muitas pessoas. Orcas podem viver mais de 80 anos e têm fortes laços familiares, permanecendo juntas por toda a vida.
Já havíamos passado Vitória, era uma e meia da madrugada e estávamos chegando perto. Ligamos para a Larissa que estava lá sozinha com a baleia. Ela precisava descansar um pouco pois tinha passado o dia todo por lá. Como já estávamos chegando combinamos dela ir para casa descansar um pouco e colocar roupas secas e nós assumiríamos os cuidados durante a madrugada.
Chegamos as duas da madrugada na praia de Castelhanos e encontramos a orca deitada de lado na areia. Por causa de uma frente fria o vento estava soprando forte e havia um chuvisqueiro, o que dificultava bastante o nosso trabalho. O local era bem isolado e só conseguíamos ver a baleia usando lanternas para iluminar a área.
A orca era uma fêmea, com 5,2 metros de comprimento e estava tombada sobre o lado esquerdo, o que era ruim pois isso comprime o coração e torna mais difícil o bombeamento do sangue. Nossa primeira providência foi levanta-la até que ela ficasse com a barriga apoiada na areia, diminuindo assim o peso sobre o coração. Examinamos a orca e externamente ela só tinha alguns arranhões e marcas de mordida, mas nada sério. Mais preocupante é que ela estava um pouco magra e muito quieta.
A maré estava subindo e logo iria chegar até onde a baleia que estava com o corpo paralelo à linha da costa. Por causa do vento o mar estava agitado e quando as ondas começassem a bater nela iam atingi-la de lado e poderiam fazer ela rolar e se machucar. Em Valdés as orcas conseguem desencalhar sozinhas, mas esta menina estava com algum problema de saúde, e iria precisar de toda nossa ajuda.
Decidimos tentar deixá-la com a cabeça voltada de frente para o mar. Isso não apenas iria diminuir a área exposta às ondas, mas tornaria mais fácil para ela começar a nadar se o nível da água permitisse ela flutuar. O problema é que ela devia pesar umas três toneladas o que não daria para nós movermos sozinho.
Houve uma jubarte adulta que encalhou em Búzios, Rio de Janeiro, a qual nós conseguimos posicioná-la de frente para o oceano usando um aliado muito forte, o próprio mar. Nós passamos uma corda pelo pedúnculo da cauda e quando as ondas começaram a chegar na baleia, ainda sem tanta força, aproveitávamos o refluxo da água e o pessoal na corda puxava a cauda em direção à terra enquanto algumas pessoas empurravam a cabeça em direção ao mar. Com a força da água ajudando a empurrar nós fomos ganhando alguns centímetros de cada vez até que conseguimos girar a baleia em 90 graus e deixa-la com a cabeça de frente para o mar.
Resolvemos fazer o mesmo com a orca. Cavamos a areia em alguns pontos para o mar para facilitar o giro e passamos a corda pelo pedúnculo. Quando as ondas começaram a chegar na baleia iniciamos a operação com João, Arnaldo e Hernani na corda puxando a cauda e eu pegando a cabeça por baixo do queixo e tentando virar em direção ao mar. Enquanto isso Juliede mantinha a iluminação para a gente e fazia o registro fotográfico.
Encalhe. Tentando reposicionar a orca encalhada em Anchieta - ES Foto Juliede Neves/Instituto Baleia JubarteMas não estava dando certo. O pedúnculo da orca era mais flexível que o da jubarte, e ela virava o pedúnculo, mas não girava o corpo. Tentamos de todas as formas, colocando mais gente na cabeça, mudando as posições, trazendo a Juliede para ajudar mas nada funcionava. A orca permanecia no lugar, sem esboçar nenhuma reação.
A medida que as ondas começaram a ganhar força com a subida da maré a situação foi ficando mais complicada. Estávamos trabalhando só com a luz de lanternas e as ondas estavam começando a ficar mais fortes. Nesta altura já estava evidente que a orca não teria condições de sair nadando.
Pedúnculo. O pedúnculo virava, mas o corpo não. Foto Juliede Neves/Instituto Baleia JubarteEstava ficando difícil manter o equilíbrio, as ondas já tinham me derrubado duas vezes. Ficamos o máximo possível, mas chegou um ponto que ficou muito perigoso e tivemos que sair da água e nos afastar. Foi muito triste ter que deixá-la sozinha, ainda mais quando uma onda mais forte bateu nela e pela primeira vez ouvimos a orca soltar um lamento.
Era umas seis da manhã quando a Larissa retornou depois de ter descansado algumas horas. Como não havia nada a fazer até a maré baixar combinamos que ela ficaria tomando conta do local enquanto nós iríamos até uma pousada para trocar a roupa molhada, comer alguma coisa e retornaríamos.
Fazia uns quarenta minutos que tínhamos deixado o local e mal tinha dado tempo de trocar de roupa quando a Larissa ligou e disse que achava que a orca não estava mais respirando. Corremos para o carro e voltamos até lá. Já tinha clareado um pouco e vimos que ela continuava na arrebentação sem nenhuma reação. Depois de um tempo constatamos que ela tinha realmente morrido.
Tivemos que esperar a maré baixar para poder recuperar o corpo e levar até a sede do Instituto Orca em Guarapari para fazer a necropsia. Mandei uma mensagem para a Ingrid agradecendo seu apoio e falando para ela cancelar a vinda pois a baleia havia morrido e que estávamos nos preparando para a necrópsia.
Descobrimos que a orca tinha uma encefalite ocasionada por um vírus além de comprometimento dos pulmões, possivelmente por ter inalado água na arrebentação. Seu estômago estava vazio indicando que ela não se alimentava há muito tempo. Sabendo como as orcas são unidas e vivem em família por gerações fiquei imaginando como deve ter sido difícil para o grupo quando esta jovem baleia começou a apresentar os sintomas neurológicos, deixou de se alimentar e foi ficando fraca até não conseguir acompanhar o grupo e acabar encalhando.
Infelizmente doenças não são as únicas coisas que separam orcas de suas famílias. Desde a década de 1960 orcas são capturadas para exibição em oceanários.
A primeira orca, São Paulo, 1987.
Por estranho que pareça meu primeiro contato com uma orca ocorreu em São Paulo na marginal Tietê, mais precisamente foi no Playcenter em 1987. Para os que não conheceram o Playcenter era um parque de diversões e durante a década de 1980 teve um tanque de espetáculos com orcas e golfinhos.
As orcas haviam sido capturadas na Islândia em novembro de 1983. Eram um macho chamado de Nandu e uma fêmea chamada Samoa.
Nas capturas os caçadores escolhem os animais mais jovens, com três ou quatro anos de idades, que já conseguem se alimentar sozinhos, mas ainda são jovens para poderem ser treinados. Estes animais são separados de suas famílias num cerco com redes. Muitas vezes o grupo permanece junto ao cercado vocalizando e tentando soltar os filhotes, até que estes são retirados da água e transportados para longe.
Nesta evento em 1983 um outro macho jovem foi capturado. Enquanto Nandu e Samoa foram vendidos ao Playcenter onde viraram a atração do Orca Show, o outro animal foi vendido para um oceanário no Canadá. Essa orca, que acabaria se tornando noticia em todo o mundo, foi chamada de Tilikum.
Nesta época eu estudava na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP e conheci a veterinária responsável pelas orcas no Playcenter. Combinei com ela uma visita fora do horário de shows para ver como era o trabalho com as baleias. Embora eu nunca tivesse visto uma baleia ao vivo, meu sonho era trabalhar com elas.
Quando cheguei próximo do tanque e ví aquele dorso escuro aparecer na superfície meu coração disparou. Estava diante da minha primeira baleia! Fiquei por lá apenas uns vinte minutos, perguntando como eram os cuidados veterinários, o que elas comiam, e tudo que passava pela cabeça. Mas logo iria começar uma apresentação. The show must go on, e eu tinha que sair.
Samoa Orca Show, Playcenter.Voltei para a USP com uma mistura de sentimentos conflitantes. Por um lado, estava eufórico por ter visto orcas pela primeira vez. Mas por outro lado era triste ver que elas estavam presas em um tanque muito pequeno, sem nada para fazer a não ser nadar em círculos e esperar pela hora do espetáculo. O tanque tinha 20 metros de diâmetro e cinco metros de profundidade, muito pequeno mesmo para dois animais jovens como Nandu e Samoa.
Nesta época a campanha contra o cativeiro de baleias e golfinhos ainda estava engatinhando mas naquele dia eu soube que se eu fosse seguir meu sonho de ser um veterinário de baleias eu precisaria arranjar uma forma de trabalhar com estes animais no mar. Não iria trabalhar com baleias em cativeiro.
Uns meses depois eu cheguei na faculdade e me disseram que o corpo da orca estava no departamento de anatomia. Fui lá ver e descobri que Nandu havia morrido três dias antes, em 02 de março de 1988. Seu esqueleto foi doado para a FMVZ-USP onde está montando em exposição no Museu de Anatomia. A necropsia apontou como causa da morte um tumor de glândula adrenal além de complicações respiratórias. Nandu ainda não tinha sequer atingido a maturidade sexual.
Samoa ficou sozinha até maio de 1989 quando, depois de cinco anos de shows no Playcenter, ela foi vendida para o SeaWorld de Orlando. Nesta época ela estava com idade estimada de oito anos, iniciando a vida adulta.
Nandu e Samoa foram as primeiras orcas que conheci, mas levaria algum tempo até eu conseguir ver minha primeira orca em vida livre.
Vida Livre, Alasca, 2007
Vinte anos após aquele primeiro encontro com Nandu e Samoa eu já havia conseguido realizar meu sonho de trabalhar com baleias em vida livre. Embora eu já tivesse encontrado com centenas de jubartes ao longo destes anos ainda não tinha visto orcas na natureza. A tentativa em Punta Norte, na Península Valdés não havia dado certo, mas agora surgia uma nova oportunidade.
Estava a caminho de Anchorage, no Alasca para minha primeira reunião da Comissão Internacional da Baleia. Anchorage está localizada a 61º de latitude Norte, para se ter uma idéia nesta mesma latitude no Hemisfério Sul está a ilha Elefante onde parte da tripulação do Endurance aguardou enquanto Sir Ernet Shackleton cruzou o estreito de Drake até as ilhas Geórgia do Sul em busca de socorro para retirar seus homens da Antártica.
A costa noroeste da América do Norte, desde o estado de Washington, passando pelo Canadá até chegar ao Alasca é a meca para quem gosta de orcas, então as chances de eu ver minha primeira orca em vida livre eram boas.
O primeiro bom sinal foi que quem também estava participando da reunião era a Ingrid Visser, a maior especialista em orcas do mundo. Nos conhecemos durante a reunião da CIB e ficamos conversando sobre orcas e os problemas que ela estava enfrentando na Nova Zelândia com os animais encalhados. Não imaginava que uns anos depois Ingrid estaria me ajudando com uma orca encalhada no Brasil.
Anchorage é uma bela cidade e todos os dias eu caminhava cerca de dois quilômetros desde o meu hotel até o local da reunião da CIB, aproveitando para ir conhecendo a cidade. Um dia reparei num local chamado Memorial do Terremoto. Fiquei curioso com o nome e entrei para conhecer.
Eu não sabia, mas o pior terremoto do hemisfério Norte teve seu epicentro a menos de 120 km a leste de Anchorage em 27 de março de 1964. Este terremoto atingiu 8,6 na escala Richter e teve duração de 4 minutos. Há fotos impressionantes daquela mesmo lugar, por onde eu caminhava todos os dias, com casas destruídas e a rua tinha afundado mais de 3 metros, você pode ver as fotos clicando aqui. Terremotos são comuns no Alasca, embora a maioria não tenha grande magnitude. Não posso dizer que isso me trouxe muita tranquilidade nas duas semanas em que fiquei por lá.
Depois de duas semanas de reunião finalmente chegou o dia de folga e organizamos um passeio de barco para observação de baleias nos fiordes da Península de Kenai. Embarcamos no "Misty", uma lancha para dez passageiros e saímos a navegar em Resurrection Bay, e depois seguimos em direção ao Kenai Fjords National Park. Estava um dia nublado, meio acinzentado e muito frio, mas quem liga para isso quando a paisagem da região é maravilhosa, com montanhas cobertas de gelo, águias voando em busca de alimento, ursos caminhando em meio à neve e muitos animais marinhos.
Já tínhamos encontrado um grupo de toninhas comum, Phocoena phocoena, nadando rápido e também lontras marinhas, Enhydra lutris, boiando de barriga para cima. Nas pedras nos vimos algumas focas dos portos, Phoca vitulina, aproveitando o calor do sol para se aquecer.
Quando entramos num canal o capitão avisou que tinha recebido pelo rádio informação de que haviam baleias mais adiante. Enquanto navegávamos eu e um colega italiano vimos um borrifo ao longe e surgindo da água uma nadadeira dorsal que não parava de crescer. Não havia dúvida, estávamos diante de orcas!
Primeiro vimos o macho adulto, que é bem fácil de reconhecer por sua dorsal que pode chegar a 1,8 metros de altura e é mais reta. Depois apareceram as fêmeas e animais jovens com as dorsais mais baixas e mais falcadas. Elas nadavam na direção do nosso barco e estavam divididas em dois grupos. Éramos dez pesquisadores de baleias, mas todos nós ficamos agitados como crianças num parque de diversões. Todas as câmeras esperando o momento para fotografar.
Depois de um mergulho o macho subiu para respirar perto do nosso barco, passou pela gente e seguiu nadando em direção à terra. O grupo todo estava se aproximando da costa e imaginei que elas provavelmente estavam caçando peixes.
Não sei bem ao certo quanto tempo ficamos acompanhando as orcas, perdi completamente a noção do tempo. Elas nadavam muito perto da costa e nós estávamos com o barco parado um pouco mais afastado. De repente o grupo começou a se afastar da costa e seguiu em direção ao mar aberto. O macho passou novamente perto do barco e desta vez deu para ver bem a mancha branca que é bem característica das orcas.
Enquanto observávamos as orcas se afastando comecei a ouvir um barulho muito forte e quando olhei para trás, em direção à terra, vi a encosta desmoronando. Toneladas de terra, rochas e árvores vieram abaixo e escorreram para o mar, levantando uma grande nuvem de poeira. O deslizamento começou e não parava mais. O capitão disse que, pela quantidade de material que estava vindo abaixo, era provável que tivesse ocorrido um pequeno terremoto, o que fez com que o deslizamento ocorresse.
As orcas se afastaram da praia um pouco antes do deslizamento ocorrer. Será que elas perceberam as vibrações do terremoto? Da próxima vez que eu ver orcas nadando rápido em direção ao mar vou seguir junto com elas.
Na viagem de volta ainda avistamos outro grupo de orcas e também algumas baleias jubartes. Poucos dias depois estava conversando co a médica veterinária Francis Gulland que me contou que duas jubartes (mãe e filhote) durante a migração para o Alasca entraram no rio Sacramento, Califórina, e subiram 90 milhas rio acima. Francis falou como estava indo a operação para tentar levar as baleias de volta ao mar. Eu nem imaginava que dali há seis meses seria eu que estaria tentando resolver o problema de uma baleia minke dentro do rio Tapajós (veja essa história aqui).
Havia demorado, mas eu finalmente encontrei as orcas em seu habitat natural, na costa Noroeste da América do Norte. Antes disso porém eu já havia conhecido uma outra orca que nasceu nesta região, mas que estava vivendo há décadas em Miami.
Lolita, Miami, 2001.
Na natureza as orcas podem viver por mais de 80 anos, havendo um caso conhecido de uma orca centenária. Mas em cativeiro a expectativa de vida é muito menor, com os animais morrendo muito jovens. Há porém uma orca, que contra todas as expectativas, se mantém viva em um local com péssimas condições.
Lolita era uma orca da população residente sul, que vive no pacifico norte próximo à ilha de Vancouver. Eu e Lolita temos mais ou menos a mesma idade, ela é de 1964 e eu de 1965. Quando Lolita foi capturada em 8 de agosto de 1970 ela tinha mais ou menos seis anos, mas nos dois só fomos nos conhecer mais de trinta anos depois.
Lolita foi separada de sua família e vendida para o Miami Seaquarium onde vive deste então. Nos primeiros dez anos ela tinha a companhia de outra orca chamada Hugo. Mas em 1980 Hugo morreu e desde então Lolita nunca mais viu um animal de sua espécie.
Em 2001 quando trabalhava no Projeto Peixe-Boi, fiz uma viagem para um congresso em San Juan, Porto Rico. Na volta havia uma escala em Miami onde ficaria por oito horas aguardando a conexão. Eu e Régis Lima, o chefe do Centro Mamíferos Aquáticos, resolvemos aproveitar o tempo para visitar o Seaquarium e ver as instalações de lá.
Durante a visita encontrei com Lolita que foi a terceira orca que conheci. Ela tem 6 metros de comprimento e vive em um tanque com 6 metros de profundidade e 11 metros de largura, bem abaixo dos padrões para cativeiro. Estava fazendo um dos vários shows diários que as orcas em cativeiro fazem para gerar lucro para os oceanários.
Lolita. Desde 1980 não convive com outras orcas.Foto: Milton Marcondes
Há uma campanha #FreeLolita para que ela seja transferida para um cativeiro em ambiente natural, próximo de onde foi capturada. Assim ela poderia ao menos se "aposentar" e passar seus últimos dias em um cercado no mar, onde ela possa nadar e interagir com outros animais.
Em agosto Lolita irá completar 50 anos de cativeiro. Manter uma orca em um tanque tão pequeno por tão longo tempo é extremamente cruel. Lolita é um caso extremo de resiliência, vivendo em condições desumanas há quase 50 anos, mas ela é a exceção à regra. Em geral as orcas em cativeiro morrem muito antes, como ocorreu com Nandu e também com Samoa.
Conversa de bar, Rio de Janeiro, janeiro de 2000.
Era um final de tarde na beira da lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro. Estávamos num barzinho tomando cerveja e comemorando o final do trabalho. Uma semana antes nós nem sequer nos conhecíamos, mas um derramamento de óleo na Baia da Guanabara tinha levado todos nós para o Rio com o mesmo objetivo: construir um plano de contingência.
Em janeiro de 2000 houve um vazamento na Refinaria de Duque de Caxias, RJ, e 1.300 toneladas de petróleo vazaram na Baia da Guanabara. Foi um desastre enorme atingindo a fauna da baia e também os manguezais. Nos primeiros dias uma equipe foi mobilizada para fazer a despetrolização das aves e outros organismos, e já estava no local trabalhando.
Mas havia o risco do óleo atingir a população de botos-cinza (Sotalia guiananesis) que frequentam a baia da Guanabara. A Petrobrás contratou então a Sea Shepherd Brasil para elaborar um plano de contingência que organizasse um monitoramento e resposta caso isso viesse a ocorrer.
A Sea Shepherd trouxe dois especialistas do exterior: o médico veterinário Samuel Dover, que havia trabalhado com cetáceos no SeaWorld de Orlando e agora estava trabalhando no Zoo de San Diego e o biólogo Michael Short que trabalhava no parque da Grande Barreira de Coral da Austrália onde havia um plano de ação para os eventos de derramamento de óleo.
O Instituto Baleia Jubarte também foi chamado a participar da construção do plano e apesar de na época eu não fazer parte da equipe, a Márcia Engel, presidente do IBJ pediu que eu fosse para o Rio de Janeiro colaborar com a iniciativa.
Passamos vários visitando a área atingida, conversando com o pessoal do MAQUA que trabalhava com os botos, fazendo treinamentos de necropsia e elaborando o plano. Depois de uma semana o plano estava construído, o monitoramento sendo realizado e felizmente nenhum boto foi avistado na área onde o óleo estava.
Com nossa parte do trabalho concluída estávamos prontos para retornar cada um para sua casa, por isso resolvemos aproveitar este último dia para fazer um happy hour e comemorar o trabalho finalizado.
Eu e Samuel éramos os únicos veterinários do grupo e começamos a conversar sobre o trabalho com mamíferos marinhos. Aproveitei e perguntei se ele conhecia a Samoa, pois desde que ela tinha saído do Brasil, em 1989, eu não sabia o que tinha ocorrido com ela.
Samuel fez com uma cara de surpresa e disse que sim, Samoa havia sido sua paciente quando ele trabalhou no SeaWorld. Comentou que ela era um animal muito inteligente e dócil de lidar. Contei para ele como tinha conhecido a Samoa e enquanto conversávamos reparei que nossos amigos do Sea Shepherd tinham começado a rir. Quando perguntei o motivo da risada eles disseram:
"Vocês dois estão sentados num bar no Rio de Janeiro, falando sobre uma orca que vocês conhecem como se tivessem descoberto que têm uma amiga em comum. Tá muito surreal".
Fizemos um brinde aos nossos amigos do mar e continuamos com o bate papo. Quando perguntei ao Samuel como a Samoa estava sua expressão mudou. Ele me contou que Samoa havia morrido em 1992 de uma infecção por fungos no cérebro e que ela estava grávida quando morreu. Foi muito triste receber a noticia da morte de Samoa. Ela morreu com apenas doze anos de idade, um pouco mais velha que Nandu. Continuamos a falar sobre as orcas e, em meio ao bate-papo, acabamos chegando num caso recente que havia ocorrido com Tilikum.
Tili também foi capturado na Islândia em 1983 e talvez fosse parente de Nandu e Samoa. A imprensa havia noticiado que uns meses antes, em julho de 1999, uma pessoa havia sido encontrada sem roupa e morta dentro do seu tanque. Embora na natureza nunca tenha sido registrado um ataque de orca às pessoas, em cativeiro os ataques são relativamente frequentes. Este era o segundo caso fatal e em ambos Tilikum esteve envolvido.
A primeira vez foi no Canadá em 1991 quando uma treinadora foi atacada e morta, sendo a primeira vez que uma pessoa era morta por uma orca. No tanque além de Tili haviam duas orcas fêmeas e não ficou claro qual o papel de cada um no ataque. Tilikum foi vendido para o SeaWorld e agora outra pessoa havia sido encontrada morta em seu tanque e desta vez não havia outras orcas envolvidas.
A imprensa havia noticiado que um visitante havia se escondido após o show das orcas e durante a noite havia entrado sem roupa na piscina com Tilikum, sendo encontrado morto no dia seguinte e atribuindo a morte a hipotermia ou um ataque do coração.
Samuel já havia saído do SeaWorld, mas ele ainda tinha contato com as pessoas de lá e disse que haviam sinais de ataque à pessoa, inclusive o órgão genital havia sido arrancado e foi encontrado presos à grade do sistema de filtração do tanque. Mas a notícia havia sido abafada. Ele disse estar impressionado como a pessoa conseguiu driblar o sistema de segurança e entrar no tanque, que é monitorado por câmeras, sem que ninguém percebesse, só sendo encontrado na manhã seguinte quando um funcionário chegou para fazer a limpeza do oceanário.
Em todo o mundo esta foi a segunda vez que pessoa foi morta por uma orca. Outras duas mortes ainda iriam ocorrer e, em uma destas, o ataque de Tilikum foi testemunhado pelo público.
Keto, Tenerife, Maio de 2010
Em 24 de fevereiro de 2010 estava ocorrendo um show no SeaWorld Orlando chamado Jantar com Shamu. Neste evento o público pagava para jantar ao lado do tanque, e tinham um contato mais próximo com as orcas e seus treinadores. Enquanto as pessoas se serviam num buffet a treinadora ia explicando como é feito o treinamento das orcas e mandando o animal fazer alguns truques.
O SeaWorld usa um nome artístico para seus animais. Quando morre uma baleia outra passa a usar o nome artístico, dando assim a impressão que Shamu continua vivo e se exibindo para o público. Neste dia Tilikum era Shamu e a treinadora era Dawn Brancheau.
Tili já tinha demonstrado não estar num bom dia durante o show normal, quando se recusou a fazer algumas das rotinas do espetáculo. Durante o Jantar com Shamu ele agarrou Dawn e a puxou para dentro do tanque iniciando o ataque que levaria à morte da treinadora. O ataque foi presenciado pelo público e não houve como abafar a história. Só que dois meses antes outro treinador já havia sido morto por um filho de Tiliku, mas pouca gente ficou sabendo.
Eu estava nas ilhas Canárias, à convite de Antonio Fernandez, médico veterinário patologista que descobriu por que as baleias bicudas morriam quando expostas ao sonar da Marinha Americana. Antônio havia me convidado para passar um mês na Universidad de Las Palmas de Gran Canária para um treinamento em patologia de cetáceos. Uma das atividades que tive neste período foi acompanhar os alunos do curso de medicina veterinária à uma visita ao Loro Park, na ilha de Tenerife.
Loro Park é um zoológico especializado na reprodução de psitacídeos, mas que também tem um oceanário com shows de orcas. Neste oceanário vivia Keto, um macho filho de Tilikum, junto com Tekoa também macho e as fêmeas Skyla e Kohana. Todos eram animais do SeaWorld que tem um acordo com o Loro Park. Na véspera do natal de 2009 Keto atacou e matou o treinador Alexis Martinez. O ataque ocorreu durante uma sessão de treinamento e, como não havia público, a história não foi divu lgada.
Quando visitamos o Loro Park fazia apenas cinco meses da morte de Alex e três meses desde a morte de Dawn então havia uma tensão no ar que era perceptível. Todas as atividades na água com as orcas haviam sido suspensas. Eu e os alunos acompanhamos a veterinária responsável pelas orcas que nos mostrou como era feito o treinamento das orcas para permitir a coleta de de amostras para exames e depois assistimos a pesagem de Keto.
Keto Durante uma pesagem, cinco meses depois do ataque. Foto: Milton Marcondes
Durante a visita bservei que os dentes das orcas estavam quebrados, alguns com a polpa exposta. Perguntei sobre isso mas disseram que era "desgaste natural". Existem relatos de orcas em cativeiro mordendo as grandes e bordas dos tanques e quebrando os dentes. Isso também ocorre com alguns grandes felinos em zoológico que, ao morderem as grades de seus recintos, acabam quebrado os caninos.
O tanque tinha uma parede de vidro que permitia ver as orcas embaixo d'água. Eu estava passando próximo ao tanque quando Kohana se aproximou. Desci a escada e fui até o limite onde a barra de proteção permitia que eu me aproximasse, e fiquei a cerca de um metro do vidro.
Kohana se aproximou e parou bem na minha frente e ficou olhando para mim. Se ela abrisse a boca seria uma boa oportunidade de fotografar os dentes e poder olhar a lesão com mais atenção. Peguei minha câmera, levei-a até a altura dos olhos e fiquei pronto para fotografar caso ela abrisse a boca.
Ficamos nos encarando a cerca de 1,5 metro de distância. Eu estava completamente imóvel, apenas esperando a oportunidade de fazer a foto. Kohana só me olhava sem fazer nada. Ficamos assim nos encarando durante alguns minutos, mas no final alguém teria que fazer o próximo movimento.
Kohana resolveu tomar a iniciativa.
Ela foi à superfície respirar e, com a boca cheia d'água, jogou a cabeça para trás, lançando a água por cima do vidro. A pontaria dela foi precisa pois conseguiu me acertar e molhou meu tênis. Os estudantes caíram na gargalhada com a cena e eu também não pude deixar de sorrir.
Lembrei destas crianças que vão ao zoológico e reclamam quando vem um jacaré ou outro animal completamente parado e ficam querendo bater no vidro ou jogar uma pedra para ver se ele faz alguma coisa. Ela devia estar querendo alguma interação para quebrar a monotonia e eu tinha ficado imóvel na frente dela. Acho que mereci o banho que ela me deu.
Voltando para Gran Canária comecei a pensar sobre estes quatro casos fatais de ataque de orcas, todos ocorridos em cativeiro. Não existe nenhum registro de orcas atacando pessoas na natureza mas em cativeiro a história é bem diferente, com muitos casos documentados de ataques à treinadores.
As orcas são separadas de suas famílias ainda jovens, quando estão na fase de socialização, para serem levadas para os oceanários. São então colocadas em tanques pequenos e misturadas com orcas de outras origens. Elas têm dialetos diferentes, tem hábitos de alimentação diferente, mas em cativeiro todas recebem a mesma alimentação, independente do que ela costumava comer na natureza. Quando ocorre agressões entre elas não há para onde escapar. As fêmeas que deveriam viver com seus filhotes durante décadas vem seus filhos serem levados embora tão logo eles desmamem, porque um filhote atrapalha a mãe a realizar os truques que ela precisa executar durante o show. Isso cria uma situação de stress continuo para estes animais, daí as mordidas na borda do tanque, os dentes quebrados, as agressões entre as baleias e também os ataques aos treinadores.
O filme Free Willy (1993) deu início a uma campanha pela libertação de Keiko, a orca que fez o papel de Willy no filme, e começou a mudar a visão do público sobre os shows com orcas. Vinte anos depois, o documentário Blackfish (2013) expôs de vez os problemas do cativeiro de orcas ao contar sobre a morte de Alex e Dawn, mostrar os inúmeros casos de ataques ocorridos e como as orcas são tratadas em cativeiro. Isso levou a uma maciça campanha contra o SeaWorld e outros aquários que mantém baleias e golfinhos em cativeiro.
Old Tom, Atlântico Norte, 2012
Em 2012 eu e Leandro Aranha, médico veterinário do IBAMA fomos para Provincetown, Massachussets, fazer um treinamento de soltura de baleia presas em equipamentos de pesca. O treinamento foi feito no Center for Coastal Studies (CCS)e durou um mês. Vou abordar este problema dos emalhes de baleias em um outro post. Durante o treinamento participamos de um cruzeiro de pesquisa que saiu de Cape Cod nos Estados Unidos e seguiu até Bay of Fundy no Canadá. O trajeto de ida e volta levou dez dias nos quais subimos a costa até o estado do Maine e de lá atravessamos até Nova Scotia no Canadá. Viajamos à bordo do barco do CCS, o Shearwater. Além de Leandro e eu estavam à bordo nossa amiga da Argentina Marta Hévia, que também estava fazendo o treinamento, Jooke Robbins, David Mattila e Jane, todos do CCS.
Passamos o tempo todo em busca de baleias e quando encontravamos nós tinhamos que identificar, fotografar e registrar todas as informações. No segundo dia de viagem começamos a nos afastar da costa para atravessar até o Canadá. A medida que navegávamos para águas mais fundas diminuia as avistagens mas aumentava as chances de ver outras espécies de águas mais profundas.
Estava um dia nublado, bem cinza mas com o mar tranquilo. Encontramos um cachalote, Physeter macrocephalus, o que já animou bastante o dia. De repente vimos uma longa dorsal surgir na superfície do mar na nossa frente. Era uma orca surgindo bem no nosso rumo.
Era um macho e não sabíamos quanto tempo ele iria permanecer alí. Enquanto preparava minha câmera fui avisar o Leandro, que estava dentro da camarote. Desci a escada e ainda segurando nos degraus só coloquei a cabeça na porta e gritei "Leandro: Orca!" e voltei para fotografar. Era apenas uma orca solitária, mas o pessoal do CCS já conhecia essa baleia. Estávamos diante de Old Tom.
Old Tom A dorsal dos machos de orca é caracteristica.Foto: Milton Marcondes
Esta era a segunda orca com este nome. O primeiro Old Tom foi uma orca que viveu na Austrália no início do século XX e ficou famosa por ajudar os baleeiros de Eden Port na caça às baleias. Old Tom era um macho e junto com as outras orcas de seu grupo ele conduzia baleias até a baia de Eden Port, onde os baleeiros matavam as baleias e, em troca, deixavam que as orcas comecem a parte preferida por elas, a língua. Isso ficou conhecido pelos baleeiros como a "Lei da Língua" (Law of the Tongue). Old Tom morreu em 1930.
Agora estávamos diante do Old Tom do século XXI, chamado algumas vezes de Ol'Tom. Enquanto fotografávamos Jooke nos contou que Old Tom vive solitário há vários anos, mas ninguém sabe o motivo. Isso é estranho pois as orcas são conhecidas por viverem em grupos familiares por toda a vida e terem muita afinidade entre si.
A gente consegue reconhecer as orcas individualmente pelas marcas na nadadeira dorsal e também pela mancha cinza que existe atrás da dorsal que é chamada de sela. No caso de Old Tom ele tem uma falha perto do topo da nadadeira dorsal que torna mais fácil reconhece-lo.
Identificando Old Tom. Além das marcas na nadadeira dorsal, a mancha cinza, chamada de sela, é usada para identificar os individuos. Foto: Milton Marcondes
Acompanhamos Old Tom por alguns minutos enquanto ele respirava com frequência, hiperventilando antes de fazer um mergulho profundo. Depois da sequencia de respirações Old Tom ergueu a cauda no ar e mergulhou. Depois desta despedida nós seguimos nossa viagem rumo ao Canadá.
Há pouco tempo, vi notícias na internet sobre Old Tom. Fiquei feliz em saber que ele apareceu perto de Brie Island, no Canadá e estava bem. É sempre bom receber notícias e saber que Old Tom vive nadando livre pelos mares como toda orca deveria viver.
Para saber mais...
Quer saber mais sobre orcas? Segue abaixo algumas recomendações.
Filmes:
Blackfish (2013) 82'. Documentário que mudou a forma com que as pessoas enxergam o cativeiro de orcas. Assista o trailer aqui.
O Farol das Orcas (2016) 110'. Conta a história de Roberto Bubas, sua relação com a orcas e como uma mãe com um filho com autismo busca nas orcas uma forma de melhorar a vida da criança. Assista o
trailer aqui.
Livros (todos em inglês):
Death at SeaWorld - David Kirby. O livro que inspirou Blackfish.
Orca: The Whale Called Killer - Erich Hoyt. Livro muito bom do Erich com muita informação sobre a biologia e comportamento das orcas.
Of Orcas and Men - David Neiwert - As relações das orcas com os homens, incluindo alguns mitos dos nativos da costa Noroeste da América do Norte.
The Lost Whale - Michael Parfit e Suzanne Chisholm - A tocante história de Luna, uma jovem orca que se perdeu de seu grupo e passou a buscar a companhia das pessoas.
Bikers 4 Orcas Brazil
O Bikers 4 Orcas (B4O) é um movimento que existe em vários países de motociclista contra o cativeiro de orcas. Eu administro a página do B40 Brasil e sempre posto notícias sobre os registros de orcas no Brasil e no Mundo. Assista ao vídeo do B4O, vale a pena (duração: 2 minutos). https://www.youtube.com/watch?v=CjILkvIynGY
Agradeço à Jorge Caze pelas belas fotos de orca na Argentina, @Jorgecaze. Se tiver alguma pergunta ou comentários é só escrever ali embaixo no Deixe seu Comentário. E para não perder outras histórias e novidades é só me seguir nas mídias sociais. Até a próxima.