Uma baleia na Amazônia - Parte 3
O final da saga da minke perdida
Depois de horas parada e tranquila, a baleia tinha se assustado com o barulho do helicóptero e estava fugindo em direção ao meio do rio. Quando percebi fui atrás dela sem nem lembrar das arraias, piranhas e jacarés. Depois de três dias procurando a minke eu não ia deixá-la sumir.
Mas logo vi que essa era uma competição que eu não tinha como ganhar. Ela estava se afastando e eu fui ficando para trás. Felizmente ocorreram duas coisas que ajudaram para que eu não a perdesse de vista. Depois de se afastar da margem ela começou a nadar em círculos, um comportamento típico de quando o animal está estressado. Ao mesmo tempo a Fábia tinha subido numa canoa, que tinha um motor de popa, e vinha em minha direção. Subi à bordo e fomos acompanhando a baleia sem nos aproximar muito para não estressá-la.
Só que, ao ver a nossa situação com a baleia em fuga, o pessoal do helicóptero resolveu vir ajudar e começaram a sobrevoar a baleia tentando acompanhá-la. Era o pior que podia acontecer pois, embora o piloto tivesse boa intenção e quisesse sinalizar para a gente onde a baleia estava, isso só aumentou a agitação da minke.
Nós começamos a fazer sinais para que eles se afastassem e depois de algum tempo eles perceberam e foram pousar na margem do rio. A minke permanecia nadando em círculos, com um comportamento estranho de erguer a cabeça num ângulo de 45º quando subia para respirar. E ela estava respirando muito rápido. A passagem do helicóptero a deixou agitada e estressada.
Nos desligamos o motor da canoa e usamos os remos para ir nos aproximando aos poucos. A lancha com as redes já havia partido de Santarém mas até ela chegar não havia nada a fazer a não ser observar e evitar estressá-la.
Levou algum tempo, mas aos poucos ela foi se acalmando. Parou de erguer a cabeça no ar, sua respiração foi entrando num ritmo mais regular, mas ela permaneceu nadando em círculos. Com o remo nós medimos a profundidade, que era de mais ou menos dois metros, o suficiente para cobrir completamente seu corpo.
Enquanto observávamos ocorreu um encontro inesperado. Dois botos rosa (Inia geoffrensis) vieram nadar próximos à minke. Era uma cena tão inusitada ver uma baleia nadando com botos rosa na Amazônia, provavelmente era a primeira vez que estas espécies estavam se encontrando! Fiquei imaginando o que estaria passando na cabeça de cada um deles ao se verem frente a frente.
No meio da tarde o barco com a rede chegou. Como era produto de apreensão demorou até que o pessoal conseguisse separar as redes que estavam todas misturadas e embaraçadas. Além da rede chegaram também alguns jornalistas que queriam filmar a operação de resgate. Foi difícil convence-los que precisariam filmar à partir da margem do rio pois quanto mais barcos estivessem por perto mais estressante seria para a baleia.
Neste meio tempo tínhamos discutido como iríamos proceder. A melhor opção era conduzir a baleia até um pequeno igarapé que havia alí perto e que poderia ser facilmente cercado com as redes, usando as margens para manter a rede presa. Durante a manhã ela tinha em alguns momentos seguido nossa canoa, então inicialmente nós tentaríamos que ela nos seguisse até o igarapé. Se isso não desse certo poderíamos usar as redes para tentar direcioná-la para lá.
Colocamos a rede num barco menor e eu passei para uma outra canoa e iniciamos a operação. Embora a minke estivesse com a respiração bem mais tranquila, ela seguia nadando em círculos. Quando tentamos que ela nos seguisse isso acabou não funcionando. Em alguns momentos ela acompanhava a canoa e nadava na direção que queríamos mas logo depois ela começava a virar e acabava nadando na direção oposta até completar o círculo. Nós tentamos usar as embarcações para evitar que ela voltasse, mas ela submergia e quando voltava a aparecer já estava nadando na direção errada.
Estávamos trabalhando com o apoio das pessoas da comunidade, que conheciam a região melhor do que a gente, mas o cerco não estava dando certo. Haviam muitos palpites de como proceder, se seria melhor tentar atrair a baleia ou conduzi-la, se a embarcação deveria ficar atrás da baleia ou ao seu lado, se haveria o risco dela nadar em direção à margem e encalhar novamente. Sem comunicação entre os barcos estava difícil coordenar as ações.
Ficamos por cerca de duas horas tentando conduzir a baleia sem sucesso. O sol já estava próximo do horizonte e o vento começou a aumentar formando pequenas ondulações no rio e nós ainda nem tínhamos colocado a rede na água. Se a gente continuasse insistindo a operação iria entrar pelo começo da noite. Com pouca luz, a chance de acontecer um acidente seria grande. A baleia poderia se enroscar na rede e acabar se afogando ou causar um acidente e colocar em risco a vida das pessoas que estavam na operação.
Chegou um momento em que tive que tomar a decisão, levei à canoa até o barco com a rede e avisei que estávamos abortando a tentativa de cerco para não correr o risco de um acidente. Houve questionamentos de que a baleia poderia fugir durante a noite sem o cerco, que a imprensa estava querendo filmar a operação, etc. Disse que já tínhamos passado três dias buscando a baleia e que se fosse necessário nós continuaríamos com as buscas até encontra-la novamente.
Foi muito frustrante ter que interromper os trabalhos, mas é importante que neste tipo de situação a gente consiga discernir até onde é seguro ir e possa tomar uma decisão mesmo que esta vá contra o que gostaríamos de fazer.
Com a operação abortada nós voltamos para a margem do rio, reunimos a equipe e decidimos como proceder. Algumas pessoas iriam passar a noite no local monitorando a baleia, e o restante da equipe iria retornar para Santarém. Mesmo durante a noite a equipe que ficou no local ouvia a minke quando ela respirava e, com uma lanterna, eles as vezes conseguiam enxerga-la. Isso seguiu até as dez da noite, depois disso ela sumiu.
Quando amanheceu não havia nem sinal da baleia. Era uma segunda-feira e enquanto as pessoas da comunidade faziam uma busca pela área de São José de Arapiuna, nós entramos em contato a Petrobras de Belém para conseguir o apoio de um barco que pudesse ser utilizado no transporte da baleia de volta ao mar. Não foi possível usar o helicóptero para buscas nesse dia pois ele precisou voltar para a operação de combate a incêndios. Chegamos ao final do dia sem nenhum sinal da baleia.
Na manhã da terça-feira, dia 20 de novembro, o telefone tocou cedo. A baleia havia sido localizada, mas junto com isso veio a notícia que não queríamos ouvir, ela havia morrido. Estava a apenas 200 metros de onde ela havia sido vista pela última vez.
Segui para o local, juntamente com a minha equipe, para a triste tarefa de realizar a necropsia. Eu sabia que descobrir o que levou esta baleia a entrar no rio Amazonas e o que ocasionou sua morte poderia ajudar a salvar outras baleias encalhadas, mas é sempre muito difícil ter que realizar a necropsia em um animal que você tratou. Enquanto seguíamos de barco eu ia rememorando tudo o que tinha ocorrido e se haveria alguma outra coisa que eu poderia ter feito para que a história tivesse um final diferente. A necropsia poderia me ajudar a entender isso.
Haviam se passado 32 horas entre a minke ter sido vista pela última vez até ela ter sido encontrada. Ela deve ter morrido durante a noite, afundado no local e só apareceu quando o acumulo de gás fez seu corpo voltar a flutuar. Quando cheguei no local fiquei surpreso com o que encontrei. Ela já estava bastante decomposta, com o corpo e a língua muito inchados. Pela minha experiência com outras baleias encalhadas eu esperava que ela estivesse em melhores condições e não tão decomposta.
Amarramos uma corda no pedúnculo e, com a ajuda dos moradores, puxamos a baleia para terra. Vários jornalistas estavam lá para registrar o final da história, mas como precisávamos trabalhar rápido organizamos uma entrevista coletiva explicando o que havia ocorrido e como iríamos proceder em seguida. Eles já queriam saber do que ela tinha morrido. Expliquei que mesmo após a necropsia nós ainda teríamos que aguardar os resultados dos exames laboratoriais para tentar apontar a causa da morte.
Foi aberta uma cova no local e assim, a medida que abríamos a baleia e coletávamos o material já íamos providenciando o enterro da baleia. Apenas os ossos foram separados para que depois o esqueleto pudesse ser montado para exposição.
Encontrei uma área hemorrágica na musculatura, entre as nadadeiras peitorais, formando uma cavidade de mais ou menos 50 x 30 centímetros. Coletamos amostras para genética e metais pesados, mas pelo estado de decomposição não foi possível fazer os exames histopatológicos. Para os que quiserem se informar mais sobre este caso podem ler o trabalho publicado clicando aqui.
O estado de decomposição não permitiu estabelecer a causa da morte com segurança. A suspeita principal é que ela teve uma infecção generalizada também chamada de septicemia. A septicemia pode acelerar a decomposição de uma baleia e poderia explicar porque ela se decompôs tão rapidamente.
No dia seguinte eu retornei para a Bahia. Fazia apenas uma semana desde que eu havia recebido aquela ligação na mesa de sinuca, mas parecia ter passado muito mais tempo. A experiência que vivi na Amazônia e o contato que tive com essa baleia me marcaram profundamente.
Hoje a ossada desta jovem baleia minke, que se aventurou onde nenhuma outra baleia jamais esteve, pode ser vista no Centro Cultural João Fona, em Santarém - PA. Sua história é lembrada na região e marcou a vida de muitas pessoas que acompanharam sua saga.
Algumas semanas depois eu tive um sonho muito vivido com a minke. No sonho eu não sabia se ela estava viva ou se era o seu espírito, mas ela tinha finalmente retornado para o mar. Nós estávamos conversando e eu conseguia entender o que ela dizia. Aproveitei para lhe perguntando uma coisa sobre as baleias que sempre quis saber. A resposta que ela me deu foi surpreendente! Mas isso é assunto para outro dia.
Espero que vocês tenham gostado da saga da baleia minke na Amazônia. Se quiserem comentar ou tirar alguma dúvida deixem um comentário logo abaixo que eu responderei. Já estou preparando o próximo post: "Histórias de Orcas" com algumas das experiências que tive com esses animais maravilhosos. Para não perder as próximas postagens siga-me nas mídias sociais clicando nos links Facebook, Instagram e Twitter.