Cannabis em destaque na medicina veterinária
Dois eventos importantes promoveram um debate técnico de alto nível sobre o uso de canabinoides na clínica veterinária
A terapia canabinoide está despertando um interesse cada vez maior entre veterinários, estudantes de veterinária e pesquisadores da área da saúde. Na primeira semana de outubro tivemos dois eventos, um em São Paulo e outro em Florianópolis, onde o tema foi explorado com profundidade.
Os organizadores do Animal Health Congress, realizado no Expo Center Norte, entre os dias 2 e 4, destinaram um dos auditórios para palestrantes apresentarem suas experiências em situações específicas, como a inclusão dos canabinoides em regimes de anestesia multimodal e suas indicações nos campos da neurologia e da ortopedia.
Nos dias 5 e 6 de outubro, Florianópolis recebeu o 1o Simpósio Internacional de Medicina Veterinária Canabinoide, realizado simultaneamente com o 3o Symposium on Cannabis in Veterinary Medicine. Ao todo foram dez palestras distribuídas em dois dias. Além de Florianópolis, que reuniu cerca de 50 participantes, o simpósio foi transmitido também para cinco locais nos Estados Unidos e um no Canadá.
VetGo - Sistema de Gestão de clínica Veterinária. Desenvolvido por veterinário com formação em TI. Completo e fácil de usar. Planos a partir de R$ 69/mês. Teste grátis por 15 dias!
O evento foi realizado pelo Veterinary Cannabis Education and Consulting, com sede em Denver, no Colorado, EUA. Aqui no Brasil, a transmissão das palestras foi realizada na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, campus de Florianópolis.
A versão brasileira foi organizada em parceria da Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal - Ama+me e pelo Dr. Erik Amazonas, que é professor da UFSC nas disciplinas de Endocanabinologia, Genética Veterinária, Melhoramento Animal e Imunologia Veterinária.
Em entrevista para o NetVet News, Erik levantou alguns pontos interessantes sobre esta nova área da medicina veterinária.
NetVet News - Este simpósio tem um formato inovador desperta a curiosidade das pessoas acostumadas com um evento convencional, presencial. Como surgiu a ideia de retransmitir o simpósio no Brasil e quais os desafios que vocês encontraram na organização?
Erik - O formato foi proposto pelos membros do Veterinary Cannabis Education and Consulting como uma alternativa para aumentar o alcance e permitir que mais profissionais e estudantes tenham acesso ao conteúdo. Nas duas primeiras edições, os organizadores, sediados em Denver, no Colorado, notaram um interesse crescente de veterinários de outras partes dos EUA e também de outros países.
Nesta terceira edição, eles criaram as Watch Parties, que são estes encontros onde as pessoas se reúnem para assistir as palestras e trocar experiências em torno do tema. A ideia é formar grupos de trabalho com o apoio de médicos veterinários americanos e canadenses que são especialistas na área da medicina veterinária canabinoide.
A opção da transmissão em tempo real seria possível, contudo, eles avaliaram os riscos de interrupção e atrasos devido à instabilidade da conexão nos locais de destino e decidiram então pela gravação de palestras e a reprodução offline.
Ao final de cada palestra, perguntas frequentemente enviadas aos palestrantes são comentadas e os participantes ainda tem a opção de participar de um fórum online, com perguntas e respostas em tempo real.
NetVet News - O interesse pela medicina veterinária canabinoide tem aumentado bastante nos últimos anos. Este movimento não ocorre apenas no Brasil. Tenho visto pesquisadores trabalhando nesta área no Canadá, Itália, Israel e tantos outros países. Como você explica este evento que tende a ser global?
Erik - Na minha opinião, em cerca de 10 ou 20 anos todo médico veterinário deverá dominar o conhecimento do sistema endocanabinoide e das terapias baseadas na administração de substâncias extraídas da cannabis. Arrisco prever ainda, que neste futuro não haverá pais no mundo que manterá um status de ilegalidade para a planta.
Partindo deste ponto, é importante que o Brasil assuma uma posição de relevância neste contexto, e o caminho é justamente esse, temos que estimular a inclusão deste conhecimento nos cursos de graduação. Nós da UFSC já iniciamos este processo com a inclusão da disciplina Endocanabinologia.
Esta nova disciplina ainda é optativa, mas estamos trabalhando para colocá-la como disciplina única ou mesmo dentro da fisiologia, visto que o sistema endocanabinoide é apenas mais um sistema fisiológico. Aliás, é importante salientar que o sistema endocanabinoide é responsável pela regulação de todos os sistemas fisiológicos do animal.
O fato é que os cursos de graduação de medicina, medicina veterinária, farmácia e outros na área da saúde têm negligenciado o sistema endocanabinoide. Contudo, este sistema é bem conhecido desde a década de 90, e portanto não podemos simplesmente desconsiderar todo este trabalho. Temos que incentivar e promover a troca destas informações entre alunos, professores e pesquisadores.
NetVet News - Atualmente estamos acompanhando um processo de criação de leis que regulamentam a fabricação, importação e uso de canabinoides. O veterinário já tem acesso a estes medicamentos aqui no Brasil?
Erik - Não, o acesso não é fácil. Mesmo na área humana, onde a regulamentação está mais avançada, o acesso não é fácil. As opções são caras e são apenas algumas empresa que comercializam medicamentos à base de canabinoides. O valor de um frasco do óleo chega a custar R$ 1800,00, ou seja, praticamente inviável para a maioria da população. Não são fabricados no Brasil, a entrada é sempre via importação, o que acaba elevando os preços para o consumidor final.
O alto custo do medicamento importado legalmente já impulsiona uma produção local. Pessoas se arriscam a plantar a cannabis e extrair os óleos usando métodos caseiros. Curiosamente, estes produtos tendem a apresentar melhores resultados que o produto importado legalmente.
Temos visto relatos, tanto na medicina humana, quando na medicina veterinária, dando conta da ausência de efeitos colaterais em terapias baseadas em óleos de espectro completo (full spectrum). Minha avaliação é de que a falta de legislação adequada leva o veterinário a adotar dois caminhos. Ou usa um produto caro e coloca o paciente em risco, ou assume um risco pessoal e profissional, podendo até ser preso, trabalhando com óleos produzidos ilegalmente.
NetVet News - Já existem protocolos de tratamento estabelecidos e confiáveis nesta área?
Erik - Sim, existem alguns protocolos gerais, a maioria baseados em protocolos definidos para a medicina humana, mas que foram criados com base em testes em animais. O país que hoje se destaca na pesquisa do uso de canabinoides é Israel, mas há muitos estudos publicados também nos Estados Unidos, onde mais tem sido desenvolvida a Medicina Veterinária Canabinoide
Os protocolos normalmente referem-se ao início do tratamento, que é geralmente a parte mais delicada do tratamento. A manutenção da terapia tende a ser mais tranquila. Aliás esta é uma caraterística interessante no uso de canabinoides, que é a participação do tutor e familiares no ajuste da quantidade a ser administrada. Ninguém melhor que a pessoa que está o tempo todo com o animal para avaliar os resultados da terapia.
Outra característica que reforça esta tese é que existe uma variação muito grande da intensidade do efeito entre os animais. Não só variações relacionadas à raça, tamanho e idade, mas também relacionadas ao indivíduo, como perfil metabólico e nível de atividade e estimulação externa. Assim, a tendência é que os protocolos mantenham uma faixa mais ampla de variação de dose e acabam por colocar uma maior responsabilidade sobre o tutor e familiares no ajuste da dose ideal para o indivíduo.
O fato de compreender a dinâmica de dose e efeito, permite um controle melhor do ajuste da dose por parte do tutor, e também por parte do médico veterinário, desde que ele mantenha um contato permanente com o tutor e um monitoramento, mesmo que à distância, do caso clínico.
Neste aspecto, o uso de software de gestão de casos clínicos torna-se fundamental, pois permite acesso rápido ao prontuário clínico e histórico de tratamento e analises mais precisas. O resultado é que o veterinário se arma de ferramentas que vão ajudá-lo a melhorar a compreensão da situação e assim poder tomar decisões rápidas e assertivas.
NetVet News - A cannabis é uma planta que está em evidência no mundo todo, vários países partindo para a legalização da planta, mercados sendo prospectados, tanto do ponto de vista social quanto medicinal. Qual o papel do Brasil neste contexto?
Erik - O mundo já deu o passo para a legalização da planta para uso medicinal. Não vejo sinais de retrocesso, é um caminho sem volta. Os Estados Unidos já estão caminhando para aprovação de uma legislação federal, e quando isso acontecer, vários países seguirão os mesmos passos, aproveitando todo o conhecimento que está sendo produzido neste país, na esfera legal e científica.
A questão que colocamos é onde o Brasil quer estar quando a legalização da planta for implantada em países como Estados Unidos? Estima-se um mercado bilionário, envolvendo o uso medicinal e principalmente a exploração comercial e industrial do cânhamo, muito usado na indústria têxtil, construção civil, produção de plásticos, combustíveis, construção civil entre outros.
Enquanto empresas de fora se movimentam para explorar a planta, o Brasil parece parado no tempo, perdendo uma oportunidade de se tornar um player importante neste mercado.
Precisamos difundir mais os conhecimentos obtidos nesta área, estimular debate, apoiar e promover iniciativas no sentido da legalização da planta. Este é o trabalho crucial que as associações vem fazendo ao longo dos últimos anos e também fazemos aqui na UFSC através da disciplina que ministro, da promoção de eventos como este simpósio em parceria com a Ama+me e o contato com pesquisadores de fora.
Veja mais:
Veterinary Cannabis Education and Association
Associação Brasileira de Pacientes de Cannabis Medicinal - AMA+ME
Uso de Canabidiol na medicina veterinária